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quarta-feira, janeiro 05, 2005

Tragediofilia

Hoje decidi falar-vos um pouco sobre uma característica patente em todos os portugueses - o gosto pela tragédia - característica essa que carinhosamente apelidei de tragediofilia.

Não é muito difícil identificar os traços de tragediofilia em inúmeras situações do nosso dia-a-dia, a começar pela comunicação social. É só haver uma desgraça e é ver o pessoal todo do bairro no café do Tio Manel a beber umas bejecas e a comer tremoços enquanto assistem à edição especial-alargada-exclusiva-expandida do telejornal no ecran gigante. Esta semana, por exemplo, o programa ia ser assistir pela 5672ª vez às imagens do tsunami que arrasou a Ásia, com especial destaque para as imagens cuidadosamente escolhidas pelo "sensível" e "humano" realizador, nas quais podemos ver um desgraçado a levar com uma onda em cheio na carola e a dar 5 cambalhotas à frente, 3 atrás e 4 saltos mortais com 2 piruetas encarpadas... E tudo isto em câmara-lenta! É melhor que ver os Jogos Olímpicos!

A tragediofilia está também bem patente na nossa cultura. O exemplo mais óbvio é, sem dúvida, o fado!
O conteúdo de uma letra de qualquer bom fado à portuguesa resume-se mais-ou-menos a isto:

Ai coitadinha de mim
Morreu-me o marido, morreu-me o piriquito
O meu cão está com Alzheimer
O meu gato perdeu o rabo e o meu filho virou rabeta
Sou uma desgraçada, que vida cruel
Vou-me suicidar com o cheiro do meu próprio sovaco
Ai ai ai ai ai
Ai ai ai ai ai
Ai ai ai ai ai

E o mais engraçado é que a malta considera que uma noite passada a ouvir isto é uma noite bem passada.

Mas tudo isto que acabei de mencionar torna-se verdadeiramente insignificante quando comparado com o passatempo favorito de 90% da população pensionista portuguesa: doenças ao desafio!
Quem nunca assistiu a esse momento maravilhoso que é um despique entre duas pensionistas na fila do supermercado? As duas almas iluminadas degladiam-se até à exaustão para que, no final, uma delas se possa sagrar campeã de doenças e males afins, deixando a outra pobrezinha reduzida à sua miserável e vergonhosa saúde de ferro. Algo deste tipo:

Tia Jaquina: Ah... bocê sabe lá o que eu sofro... Eu ando muito mal das costas, sabe?
Tia Chica: O quê? Oh minha senhora, isso não é nada... eu tenho aqui uns bicos de papagaio que não me deixam dormir há 5 meses! Já me mandaram fazer 3 Ró-xis e não me resolvem o problema.
Tia Jaquina: Pois eu já não durmo há 2 anos! Dá-me umas dores de cabeça insuportáveis! Já fiz 1 taco e 2 ressonadelas manganéticas e estou na mesma!
Tia Chica: Pois olhe, sabe que mais? Eu estou muito pior que bocê! Estou tão mal que até vou morrer já aqui... olhe... pronto!
*A Tia Chica estatela-se no chão*
Tia Jaquina: Olha-me a desgraçada... Agora é que me lixou. Afinal sempre estava pior que eu. Raisparta a mulher!

Apetece dizer que somos, no mínimo, um povo original!